Itamar Silva*
A cidade do Rio de Janeiro, mais uma vez, é cenário das contradições que marcam o Estado brasileiro. Há avanço democrático na estrutura representativa formal, como conselhos, fóruns abertos à participação da sociedade, bem como leis cidadãs como a que garante e promove os direitos de crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA). Por outro lado, as polícias estaduais – militar e civil – e, agora, o próprio Exército brasileiro, responsáveis pela segurança de cidadãos e cidadãs, e que deveriam se pautar pelos parâmetros legais, promovem chacinas em favelas e áreas populares.
As favelas do Rio, tantas vezes usadas como moeda de troca na política clientelista, resistiram e conseguiram introduzir no manual das políticas públicas o tema da urbanização. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) é a mais recente evidência de que essas localidades estão inexoravelmente imbricadas à paisagem e à história dessa cidade.
No entanto, enquanto a população da favela se organiza para interferir no debate em torno das obras do PAC, ali, onde se constituiu a primeira favela dessa cidade, na Providência, uma atuação silenciosa (ao menos assim seria até as vésperas da próxima eleição), levada a cabo por um dos candidatos à prefeitura do Rio, promove uma maquiagem no local, com recursos do governo federal e sob a proteção do Exército. No entanto, o “cimento social” usado para rebocar as casas está manchado pelo sangue de três jovens negros, moradores daquela favela.
Na manhã do sábado, 14 de junho, David Wilson Florêncio da Silva, 24, Wellington Gonzaga Costa, 19, e Marcos Paulo da Silva, 17, foram presos por militares dentro da favela e levados ao quartel do Exército. Depois de interpelados, oficialmente foram dispensados – a partir daí “a notícia carece de exatidão”.
Os jovens não chegaram em casa. Por decisão daqueles militares, diretamente envolvidos na prisão -- um tenente, um sargento e dois soldados --, foram levados até a favela da Mineira, a poucos metros dali e comandada por uma facção rival àquela que controla o Morro da Providência. No dia seguinte, os corpos dos três jovens apareceram junto aos detritos despejados no lixão de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias.
Não se sabe qual foi a negociação entre os militares e os traficantes da Mineira. Não se sabe o que foi dito e a título de que aqueles militares cumpriram esse papel. Ainda não está claro qual a relação anterior entre os militares e os traficantes. No caso em questão, os jovens não trocaram tiros com e também não foram encontrados com eles “armamentos pesados” e nem mesmo foi feita “a maior apreensão de drogas”, argumentos que recorrentemente têm sido acionados pela polícia do Rio para “convencer” a sociedade carioca de que as execuções ocorridas nas favelas foram e são inevitáveis.
Mas apesar de todas as evidências da inocência dos jovens, a chacina da Providência foi incapaz de sensibilizar a classe média carioca e gerar manifestações de forte apelo emotivo, exigindo o cumprimento da lei.
Mais uma vez nos deparamos com dois pesos e duas medidas quando o fato é a morte violenta no Rio de Janeiro. Uns são “matáveis”: homens, jovens negros e moradores de favelas. Outros devem ser protegidos. Com certeza a dor dilacerante desses familiares terá menos solidariedade do conjunto da sociedade carioca e menos espaço nos horários e espaços nobres da mídia local do que costumam ter acontecimentos igualmente trágicos envolvendo jovens e pessoas de outras classes sociais.
Essa chacina recoloca o debate sobre o papel do Exército nas favelas cariocas. Independente de sermos a favor ou contra, este fato obriga, mesmo que por um tempo, que o Exército se recolha à caserna para refletir sobre o seu papel no controle da violência urbana e, especificamente, sobre a melhor forma de contribuir para o restabelecimento da autoridade perdida pelo Estado brasileiro nos territórios dominados pelo tráfico e/ou pela polícia mineira.
É com pesar que constatamos que num curto período de tempo, deixados a sós na sua atuação em uma favela, esses militares incorporaram o que há de mais vil na prática da chamada “banda podre” das polícias do Rio de Janeiro: pactuação com as forças marginais que dominam as favelas e o uso de vidas humanas como moeda de troca.
Então, o que o Exército continuará fazendo na Providência? Por que a aliança publicamente apregoada por Lula e Sérgio Cabral em torno dos investimentos no Rio de Janeiro não constrói um diálogo entre o Exército e a Secretaria de Segurança Pública do Estado? E por que um projeto de um senador, com uso de recursos públicos, conquista o direito de ter o Exército como cão de guarda? O que prevalecerá: o Estado de direito, democrático, igual para todos e todas ou o estado neopopulista em que se privatiza o público e não se respeita a vida?
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